domingo, 30 de setembro de 2012

Compartilhando...





 
A Arte de Ver
 
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
 
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
 
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
 
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
 
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
 
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
 
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
 
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
 
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".
 
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...
 
(Rubem Alves)
O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.
 
 
Mais um texto deste autor que simplesmente amei!Que nós possamos ver mais que o normal,o banal,ver de verdade,com os olhos da alma e do coração.
Por aqui tudo tranquilo.Um beijo em cada bochecha!
 




18 comentários:

  1. Ane,que coisa,menina!Eu estava lendo esse texto hoje no livro "Ostra feliz não faz perola"!Que coincidencia postar aqui!De fato,Rubem Alves nos espanta!...rss...bjs e meu carinho,

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  2. Nossa q texto lindo... hehehe.. amo vir aqui.. e amei seu comentário.... tem capitulo novo na área.. http://legallyjenynhasantana.blogspot.com.br/2012/09/capitulo-17.html surpresas e surpresas... Beijokas

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  3. Olá Ane querida!

    Que fofinho o post amiga!
    A despedida bem simples e tocante.
    Você é pura simpatia ^^

    Obrigada pelo carinho e parabéns pelo nosso prêmio, né?
    Afinal... Nós que ganhamos o prêmio!
    Uma excelente semaninha pra você!
    Beijinhos no coração... TATIANA BERTOLIN

    casinhadasgifs.zip.net

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  4. Olá,Amiga Ane! Como vai?
    Lindo este texto que nos ensina ve com os olhos da alma,do coração!
    Este fim de semana perdemos a nossa Grande DIVA da Televisão Brasileira.
    E no meu Blog DIVAS SENSUAIS , faço uma homenagem a nossa saudosa Hebe!
    Passe lá pra ver!
    Beijos, MARY.
    http://divassensuais.zip.net

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  5. Foi muito bom reler esse texto! As colocações de Rubem Alves , além de conter encanto, nos propiciam relevantes reflexões. Tenha uma linda semana! Bjs.

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  6. Oi Ane :)
    Eu fico deslumbrada cada vez que leio um texto de Rubem Alves.Simplesmente maravilhoso.
    E vc com sua sensibilidade sempre nos presenteia,escolhendo preciosidades como 'A Arte de Ver'.
    Ufa!ainda bem que eu não estou ficando louca,pois todos os dias fico observando maravilhada a árvore que tem em frente minha casa.Eu nunca vi folhas tão lindas...
    Bjs!

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  7. Agradeço a você por sua amizade tão especial,
    e por me fazer sentir que sou alguém
    com quem você se importa.
    Agradeço a você por todas suas visitas,
    embora muitas vezes não consigo fazer visitas
    sua presença é marcante no meu blog.
    Deus lhe de uma semana abençoada beijos paz e luz,Evanir.

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  8. Que maravilha, Ane!! Ainda não conhecia.
    Um convite para refletirmos sobre o que olhamos e o que enxergamos. Gosto de tudo que a Adélia Prado escreve e ver uma citação dela, já valeu o dia. Depois desse texto, vou dar umas olhadinhas aqui em volta! Bom dia!! Beijus,

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  9. Ola ,
    caminhando pela net achei seu cantinho...hummm que primor.
    beijocas.

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  10. Oie cheguei doladinha ..estava curtindo uns dias com Edu no meu apê em Cabo Frio..foram dias magnificos..tem fotos no meu cantinho do pooh!!!E postei tb um poemão no fantasia de amor..passe lá !!!!
    Não deixe nada pra depois, não deixe o tempo passar. Não deixe nada pra semana que vem porquê semana que vem pode nem chegar.Bitucas e feliz semaninha !!
    Que belezura de texto kiida !!

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  11. Querida amiga

    Se a educação
    ensina a ver,
    esta educação
    encontrou
    o seu sentido.

    Fique com tudo aquilo
    que te acalme o coração.

    Aluísio Cavalcante Jr.

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  12. sim amiga que possamos enxergar
    além e abrir bem os olhos
    ótimo texto
    lindo dia bjs
    http://palavrasdemenina2010.blogspot.com.br

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  13. Bom dia amiga...
    Hj vim derramar um pouco de carinho aki no seu blog!!
    bjinhus

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  14. Que belo texto!
    Sempre me policio nisso. Do mesmo jeito que o texto fala sobre os olhos, assim são os ouvidos, o tato... ficamos tão mecânicos que não percebemos tudo que está à nossa volta e pra criança, tudo é novidade!
    Adorei, amiga!

    Um lindo dia pra vc,
    Abração.

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  15. Que maravilha de texto, parabéns...
    Rubens Alves tem o dom em seus escritos de nos levar a reflexões...
    Meu anjo tenha uma otima semana.. um grande beijo em seu coração.
    Lucinha

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  16. Excelente escolha, beijo Lisette.

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  17. Olá,Amiga Ane! Como vai?
    Vim agradecer o carinho e ver se já tinha novidades!
    Desde o Niver de meu Blog estou um pouco desanimada,devido a um problema num dente, que o dentista diagnosticou errado. Agora estou melhor,mas ainda tomo antibióticos.
    Como me animei um pouco,postei na minha COZINHA, umas receitinhas pro Dia das Crianças! Depois,se puder,passe pra conferir!
    Ótimo restinho de semana!
    Beijosssss,
    MARY.

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  18. Angelical!
    Bom domingo!
    Boa semana!

    °º✿♫
    °º✿Beijinhos do Brasil.
    º° ✿♥ ♫° ·.

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